Um conto verídico de natal
Eram muitas pessoas
caminhando, eram tantas, que eu me perdia no meio delas. Eu andava sozinho
pelas ruas da cidade reparando vitrines. Lembro-me que isso acontecia desde a
primeira semana do natal. Como apareciam pessoas diferentes vinda das fazendas,
dos sítios, e das cidades menores...
Minha cidade ficava repleta
de pessoas caminhando pelas ruas. Tinha pessoas bisaras e garotas bonitas e
estranhas, homens com cara de cansaço e jovens rapazes com peles grossas e
queimadas pela o sol das lavouras que plantavam, mas, agora era natal, tempo de
esquecer tudo e atentar-se para as coisas de consumo, renovação de bens, roupas
e calçados, brinquedos e meio de locomoção, como bicicletas, carroças,
motociclos, automóveis.
Havia uma avenida comprida e
em declínio que terminava do lado esquerdo da praça e outra que começava do
lado direito da praça, continuando a descida - isso para quem olhasse no
sentido do declínio. Havia lojas de ambos os lados das avenidas. Eu começava a
espiá-las desde lá de cima e descia atravessando de um lado para o outro, a rua,
para que eu pudesse ver tudo, em todas as lojas, mesmo sem poder comprar nada.
Naquelas que vendiam
ferragens e utensílios domésticos, eu as pulavam, meu interesse eram focado em
coisas de meninos. Mas no meio do caminho havia uma loja nova, recém
inaugurada, vendia livros, deparei com aquelas capas imponentes e – me lembro –
ali fiquei horas reparando cada detalhe de cada capa de cada um deles, mas como
minhas mãos eram mãos sujas, o dono veio e me pediu para deixar de emporcalhar
os vidros que me separava dos volumes expostos.
O homem, um senhor alto de
bigodes, bem vestido e cheirando a alguma loção para pós-barba, tinha em suas
mãos uma flanela amarela. Eu o olhei, virando meu pescoço para cima, devido sua
altura em relação ao meu pequeno porte, e estiquei minha mão a ele, ele me
olhou e me perguntou o que eu queria.
- Me deixe limpar para o
senhor! Ele me passou a flanela e ficou a me observar. Eu queria ficar mais ali
vendo aqueles livros...
Com uma das mãos eu esfregava
o vidro retirando minhas marcas de dedos e com a outra, eu tornava a sujar, era
inconsciente, mas assim o serviço nunca acabava e eu podia continuar a observar
aqueles livros lindos. Não sei o que imaginava encontrar dentro deles, mas
somente pelo mistério que eu colocava atrás de suas capas-portas, eu já queria
desvendá-los.
O homem me olhava.
– Você não vai terminar nunca essa limpeza!
Disse finalmente – Ande, me dê essa flanela aqui. – me disse. Eu a ofereci e
ele a pegou, e fiquei ali olhando, ora para ele outra para os exemplares lá do
outro lado, rapidamente ele terminou e me pegou pelo pulso esquerdo e disse –
Venha comigo! Fiquei com medo, e quis me esquivar, estacando, mas ele foi gentil,
não me forçou, e apenas repetiu – Venha, vou te mostrar uma coisa. Então eu o
segui receoso.
Entrou pela loja e tomou um
pequeno corredor que deu para um banheiro.
Já no local ele disse: –
Tome, peque este sabonete e lave bem suas mãos e essas unhas. Depois enxugue
aqui – mostrou a tolha. Eu obedeci sem questionar. Enquanto isso, ela abriu uma
porta lateral e lá se escondeu por um tempo. Pensei em fugir dali, mas ele
reapareceu ao meu primeiro passo.
– Lavou? Perguntou-me,
mostrando um pedaço de bolo em uma de suas mãos - Tome. Coma isso, está gostoso!
Eu o tomei meio que ferozmente e comecei a comer rapidamente, então ele me
disse: - Hei rapaz, devagar, devagar! E virando-se apanhou uma xícara de café
com leite e me deu - acho que foi a primeira vez que tomei um café com leite.
Detestei o café com leite que
me dera, fazendo uma cara amarga, mas continuei a tomar até o fim, para ajudar
a empurrar os pedaços de bolo que me entupia a garganta, devido minha gula da
fome. Quando terminei, ele me conduziu até a porta e não sei de onde apareceu
em sua mão, um pequeno livro dos três porquinhos. – Leve para você ler, é um
presente de natal. –Sai feliz, sem agradecê-lo... Até hoje, me arrependo disso!
Caminhei em meu passeio de
perambulado avenida abaixo. Atravessava a rua para lá e para cá, olhando as
vitrines, agora alimentado e de mãos limpas, e ainda eu tinha um livro dos três
porquinhos. Desci e cheguei à praça da matriz, atravessei a rua pela frente da
sorveteria pinguim. Senti um cheiro de sorvete entrar em meu nariz, e com o
dedo indicador, esfreguei-o como se quisesse tirar o cheiro insistente de
dentro dele, depois, passando entre alguns carros de praça, estacionados no
ponto de táxi ganhei a praça e segui em frente.
Aquela praça era tão bem cuidada
que nem a chamávamos de praça, mas de jardim, dizíamos:
- Vamos ao jardim hoje? E,
íamos aos Sábados e Domingos passear entre aquela multidão que saia da missa.
As ordens dos pais eram:
– Primeiro vá à missa, depois poderá dar umas
voltas na praça! E assim os jovens faziam.
Segui pelo meio da praça ou jardim,
e o perfume de rosas vermelhas exalava-se misturando com azaleias e margaridas,
com seus canteiros contornando o chafariz, que espirrava água limpa e
fresquinha para o alto.
Caminhei até chegar bem próximo
daquela beleza e fiz uma concha com as mãos e lavei meu rosto com a água
daquela fonte luminosa. Só depois segui rumo às lojas cheias de presentes -
para aqueles que podiam comprá-los. Entretanto, não me lembro de ter sentido
enganado e ou se talvez tivesse pensado que o mundo era das crianças abastadas.
As crianças, às vezes soltas, às vezes presas pelas mãos dos pais, se
alvoroçavam, saltitando alegres olhando as cores e luzes e tantas coisas novas
e bonitas.
Não sei a razão, mas eu
sempre achei que as crianças não querem saber de preços, apenas querem brincar
e ser felizes!
O que eu sentia não era
inveja delas, mas a falta de não ser como elas, de não ter os meus pais ali por
perto, me conduzindo e me dando segurança, e me mostrando todas aquelas possibilidades.
(É claro também, que essa ideia, hoje narrada, estava intrínseca em mim.) Os
presentes saindo em caixas e pacotes coloridos traziam para elas, um tipo de
felicidades que nunca eu experimentara em toda a minha vida, ou pensara em
experimentar.
Assim, entres estes
transeuntes felizes estava eu metido ao meio deles sendo empurrado, ignorado, às
vezes temido, odiado, menosprezado.
Eu sei unicamente que ali eu estava
e mesmo sem saber por que estava, eu permanecia, sei com certeza, no entanto, que
eu não tinha feito essa escolha e que nem outra qualquer eu poderia fazer. Eu
estava ali e isso era tudo.
Desci mais um pouco a avenida
até chegar numa velha praça - que ficara abandonada depois da inauguração da
praça da matriz -, e como por ali só havia alguns senhores de idade a conversar,
dei meia volta e tomei a avenida acima, caminhando agora, pela calçada contrária
a que eu havia descido. O dia tinha passado quase que totalmente e eu nem me
lembrava que tudo que eu havia comido durante todo o dia fora o tal do pedaço
de bolo dado pelo senhor alto da loja de livros.
As luzes da rua, agora acesas,
somadas as das lojas, que estavam fechando, formavam um colorido festivos e já
se podiam ver crianças brincando com seus patinetes, bolas, carrinhos, bonecas
e outros objetos. Nos alpendres e jardins das casas dos abastados da cidade,
enquanto avós e pais as observavam, as crianças que podiam ser felizes; nas
suas correrias e tombos e gritos e risos e lágrimas, acompanhavam, os acudires
e os olhos atentos dos seus. Eu continuava na minha solidão sem os meus.
De frente, quase na soleira
da porta da loja, que ainda atendiam os retardatários, eu espiava como se
velasse os brinquedos do outro lado do vidro. Tudo ali era um encanto, um
enorme papai Noel – talvez de pelúcia, estava ali estático com suas vestimentas
e caracterizações artificiais. Às crianças os via e ficavam encantadas sonhando
com toda aquela fantasia mercantilista apregoado por fabricantes de varias
coisas.
De repente senti um cheiro
ruim se aproximando de mim, o homem, com aquela roupa ensebada, como se tivesse
rolado numa carniça, se aproximava, ele tinha as costas meio curvas, quase como
se fosse corcunda ou era mesmo corcunda, seus cabelos emaranhados e sujos,
todos desgrenhados se misturavam a sua barba horrível e fétida.
– Sai! Disse-me ele,
empurrando meu corpo franzino com um dos seus braços, cuja pele manchada de
algo parecido com musgos, era meio coberta por uma camisa com a manga rasgada e
também imunda.
Adentrou a loja como um furacão,
dizendo palavras desconexas, e por isso, as senhoras o temia e escondiam as
crianças atrás de si, temendo que ele pudesse lhes fazer algum mal. Todos tapavam
as suas narinas, por causa do mau cheiro do homem. Quando este chegou ao balcão
começou a falar alto e legível, como se tivesse recobrado os sentido:
- Eu sou o verdadeiro papai Noel!
Sou o verdadeiro papai Noel! Ele, senhoras e senhores, sou eu, o verdadeiro! E
ria, sem parar.
Então no meio daquela cena
estranha as crianças encolhiam-se sem entender nada. Os pais protegiam suas
esposas e estas as crianças. O dono da loja, então, caminhou dando volta por entre
uns apetrechos e rumou para se pôr de frente ao homem, que teimava em dizer: “Eu
sou o verdadeiro papai Noel, eu sou!” Então o dono da loja começou a esbravejá-lo
e tocá-lo para fora.
- Vamos seu bêbado, saia de
minha loja, vamos... Saia! E começou a empurrá-lo, forçando ele a se virar, para
que ficasse de frente para a saída, e quando ele assim se pôs: ele me olhou
fixamente – eu senti medo dele – mas a minha curiosidade era maior para ver o que
aconteceria com o pobre homem, em certo momento, no entanto, ele se estanca
empacando como se fosse uma mula, depois olhou para um lado e para outro,
apanhou um carrinho de plástico com uma de suas mãos, e como se aquilo fosse um
troféu ele erguia o objeto pondo a frente de seu corpo, de modo que o dono da
loja, embora tentasse, não conseguia tomar dele, o brinquedo.
Ele caminhava - tentando se
desvencilhar do dono da loja, que pelo carrinho em sua mão, deixou de ser
empurrado para ser segurado -, seguia em direção a porta. O dono da loja, por motivo
do corredor até a saída estar estreito, devido à quantidade de coisas
desorganizadas e expostas em ambos os lados, não conseguia tomar-lhe a frente
para recuperar o objeto em sua mão, assim sendo, ele agora caminhava arrastando
o dono da loja para fora, quando antes, ele é quem estava sendo empurrado.
Eu continuava ali atento, e
via que o homem rompia, com dificuldades, os espaços, mas logo chegaria bem próximo
de mim, e então, quando o homem fétido estava bem junto a meu corpo, e seu
cheiro horrível quis me dar ânsia de vômitos, ele esticou o braço e me disse:
- Pega, menino, é seu, eu sou
o verdadeiro papai Noel! Então eu olhei em seus olhos úmidos e pensei tê-los
reconhecido, numa busca rápida da memória. Lembrei-me daqueles seus olhos
claros, que certamente eu já teria visto em algum lugar. Mas não conseguia
saber de onde era que eu o conhecia, pareceu-me ter dado um branco na minha memória
naquele instante, porém, o homem ao me entregar o brinquedo, fez com que sua mão
me tocasse levemente a minha e percebi um enorme calor que emanava da sua.
- Puxa! Exclamei, já sei, é daquela
pintura lá da igreja, ele tem os mesmos olhos!
Mas em meio a essa estase que
eu experimentava ele correu por entre os carros ali na rua estacionados e sumiu.
O dono da loja me olhou por um instante e eu me voltei para ele, esticando
minha mão com o presente para devolvê-lo, ainda sem fechar minha boca que
estava seca e buscava alguma umidade no ar ainda cheirando mal pela passagem do
meu papai Noel.
O dono da loja segurou o
brinquedo, mas, antes que ele o tivesse totalmente de volta, um senhor gritou
lá de dentro:
- Deixe, não pegue de volta,
eu lhe pago o preço do brinquedo!
Hoje, por acaso, me lembrei
desta história e quis contá-lo a vocês, e acredite, desde esse dia até os meus
dias de hoje, eu não me lembro de um melhor presente que eu tenha ganhado! Por
isso, depois de certo tempo, eu encontrei um cãozinho abandonado, era ainda um
filhote, eu o olhei e ele me olhou, tinha uma cara de fome que doía, fixei meu
olhar para ele e disse: - Quer ser meu amigo, olhos claros? Ele abanou o
rabinho positivamente, e eu lhe dei então, o nome de Brinquedo!
Parabéns amigo Zé.
ResponderExcluirFiquei honrado, amigo, com sua presença nesta leitura, muito obrigado, grande abraço!
ExcluirNossa...hoje ao ler seu conto, lhe digo obrigada, pois posso, por esquecimento sair de seu blog e me arrepender mais tarde de agradecer o privilégio de compartilhar esse conto de natal.Belo brinquedo, unidos pelo amor fiel, em amizade!!!!Feliz Natal amigo.
ResponderExcluirOla amiga, Rosa, que alegria me faz!
ExcluirMuito obrigado, pelo carino de tua leitura!
Seja feliz sempre!
Lindo texto, maravilhoso, sensível. Parabéns!!!
ResponderExcluirAbraços
Muito obrigado menina Janete, pelo carinho da leitura e do comentário, é maravilhoso trazer para as pessoas emoções que esta vida corrida, quer tanto nos privar...
ExcluirGrande abraço!
Quanta emoção amigo e respeitável poeta...Fiquei triste porque eu assim como você, quando criança, nunca tive um natal com família, eu tive pais, totalmente ausentes e sem amor para nos dar...Meu pai até comprava castanhas, nozes, avelãs e outros pertences de Natal, mas era tão triste, que não reluzia nada!!!..Só tristeza e sofrimentos. Um dia se eu tiver coragem eu conto. Temos uma história de infância tão parecidas que chega a emocionar...Parabéns amigo poeta, por tão bela narração e detalhes...Mas a vida deixou em você um exemplo de ser humano com um astral positivo, compondo os mais lindos versos, poemas, contos reais de sua vida, que grande sensibilidade meu amigo...Muito sucesso a você, que tem a alma nobre e de um grande poeta...Adoro ser sua amiga...BjoS
ResponderExcluirEsqueci de assinar...Izilda de Jesus Monteiro Alves
ExcluirÉ certamente honroso para um homem simples como eu ter bons amigos como os que tenho, e quanto ao dom da escrita, sou um eterno aprendiz, um dia quem sabe - o recohecimento!
ExcluirMuito obrigado amiga, Izilda!
Zé querido, perfeito teu texto....n gosto de natal, devido ao consumismo desvairado, mas o verdadeiro espirito de natal estava naquela criatura suja e fétida...ele sim, trazia dentro de si, uma enorme vontade de fazer algo, talvez a muito tempo ele já sentisse o qt o natal marca a vida da gente, o fato dele ter lhe dado o brinquedo, prova q ele foi o único q te entendeu, q te sentiu e vc era o único q via a pureza interior q existia dentro dele...com certeza vc com esta tua sensibilidade jamais iria esquecer deste dia...comovente...
ResponderExcluirObrigado, Bri, por suas reflexões sinceras e responsáveis.
Excluirsua visão sempre coerentes me deixa honrado por escrever coisas como essas.
Abraço!
Gostei de montão... PARABÉNS!!!
ResponderExcluirEspero que me convide sempre, para ler suas inspirações.
ResponderExcluirJoana Rodrigues
Poeta Zé,
ResponderExcluirMais um de teus contos maravilhosos! Parabéns! Beijos, Arlete.